Por Andréa Bruxellas
Uma decisão anunciada nesta terça-feira (30) pelo Comitê Olímpico Internacional foi de encontro as últimas tomadas em relação a participação de atletas transgênero em competições oficiais. O COI aceitou que as boxeadoras transgênero Imane Khelif, da Argélia (categoria 66kg), e Lin Yun-Ting, da Tailândia (categoria de 57kg), compitam a partir desta quinta-feira (01) no torneio olímpico feminino de boxe.
Foto: Reprodução Instagram
No ano passado, a Associação Internacional de Boxe (IBA) proibiu as duas lutadoras de disputarem o Mundial devido à detecção da presença dos cromossomos XY no sangue das atletas.
Recentemente a nadadora Lia Thomas, de 25 anos, foi impedida de competir nas Olimpíadas por uma decisão judicial. Thomas contestou as regras estabelecidas pela World Aquatics em 2022 proibindo atletas trans que passaram pela puberdade masculina de competirem em categorias femininas. O pedido foi rejeitado por três juízes que alegaram falta de legitimidade da atleta para contestar a decisão.
Na ocasião do anúncio dos critérios de elegibilidade, três meses após a vitória da atleta norte-americana, a World Aquatics, que administra competições internacionais, criou uma categoria aberta para incluir atletas trans. Em resposta às críticas de que a criação da categoria seria uma forma de discriminação, a federação afirmou que a decisão foi tomada baseada em conselhos de especialistas e com o objetivo de resguardar a integridade das competições femininas.
Alguns estudos mostram que a diferença de desempenho entre homens e mulheres se torna mais significativa na puberdade quando, dependendo do esporte e da exigência de massa muscular e força explosiva, principalmente na parte superior do corpo, podem variar de 10 a 50%.
Também apoiada nesses estudos, a Associação Internacional de Federações de Atletismo (IAAF) adotou postura semelhante a da World Aquatics, proibindo a participação de atletas transgênero que passaram pela puberdade masculina em eventos válidos pelo ranking mundial feminino.
O argumento da diferença de força tem estado presente em vários debates e reflexões sobre o tema nos últimos anos, não só no meio esportivo quanto em pesquisas acadêmicas envolvendo direitos individuais, ética esportiva, políticas de inclusão e busca por equidade de gênero.
A paridade de gênero foi uma das conquistas dos Jogos Paris-2024. Dos 10.500 atletas participantes dos Jogos, 5.250 serão homens e 5.250 mulheres. As oportunidades para ambos os sexos são bastante recentes em termos de história. Na natação, por exemplo, foi só em Tóquio-2020 que homens e mulheres tiveram a oportunidade de nadar os 800 e os 1500 m.
Os Jogos Olímpicos de Paris também comemoraram a superação do recorde de Tóquio-2020 em relação ao número de atletas autodeclarados LGBTQIA+. Segundo o site Outsports, são 193 atletas homossexuais contra os 186 de Tóquio. A equipe dos Estados Unidos tem o maior número de atletas olímpicos assumidamente LGBTQIA+: são 32, sendo apenas 1 homem. O Brasil está em 2º lugar, com 30 atletas, sendo 3 homens.
Em relação aos transgêneros, os critérios do Comitê Olímpico Internacional (COI) para competirem na categoria feminina são os seguintes: identificação de gênero declarada por pelo menos quatro anos e nível total de testosterona sérica abaixo de 10 mmol/L por no mínimo 12 meses antes e durante a competição. Os atletas também precisam concordar com o monitoramento das condições estabelecidas pela Comissão Médica do COI para tornar a competição justa e segura.
Sem dúvida os atuais critérios são uma evolução considerando-se que em 2003, ainda que na vanguarda para inclusão de atletas trans no alto nível, a diretoria executiva do Comitê Internacional convencionou a obrigatoriedade da cirurgia de retirada de testículos, dois anos de terapia hormonal além de documento de identidade comprovando a troca de sexo.
Entretanto, mesmo os atuais critérios são alvo de questionamentos tanto por parte de pessoas que apoiam quanto pelas que refutam os mesmos. Estudos recentes como os de Harper et al. (2020) e Jones (2021), apontam que as vantagens biológicas podem persistir mesmo após o tratamento hormonal influenciando o desempenho atlético e colocando atletas cisgênero em desvantagem. Outros estudos, como o conduzido pela pesquisadora Sarah Teetzel, concluem que não há ainda consenso científico que comprove as potenciais vantagens e desvantagens obtidas após a supressão da testosterona por 12 meses estabelecida como política de justiça e inclusão de atletas transgênero pelo COI.
Em artigo publicado sobre as perspectivas da supressão de testosterona levando em conta os critérios atualmente estabelecidos, Emma Hilton e Tommy Lundberg (2020) analisam as vantagens esportivas dos homens biológicos sobre as mulheres.
Durante o estudo, os pesquisadores observaram menores lacunas de desempenho no remo, na natação e na corrida (11% a 13%). Já a diferença de desempenho aumenta para uma média de 16% no ciclismo de pista e 18% nos eventos de salto (salto em distância, salto em altura e salto triplo). As diferenças de desempenho maiores que 20% foram encontradas em esportes e atividades que envolvem contribuições da parte superior do corpo como o saque de tênis e os arremessos de beisebol, que podem ultrapassar 50% de vantagem para homens.
Em 2015, a corredora master e cientista transgênero Joanne Harper publicou o primeiro estudo revisado sobre atletas transgêneros concluindo que mulheres trans sob terapia para reduzir os níveis de testosterona não levavam vantagem sobre mulheres cis em corridas de longa distância.
Em artigo de opinião publicado no Washington Post, a partir da própria vivência como atleta trans, Harper questiona exatamente o quão devagar precisaria correr para que suas concorrentes tivessem certeza de que ela não estaria se valendo de nenhuma vantagem na competição. "Para algumas pessoas, nenhuma variável importa como o gênero atribuído no nascimento. Elas não conseguem superar a ideia de que sou um homem tentando lucrar em um esporte de mulheres".
A boxeadora Imane Khelif, de 25 anos, vai competir pela segunda vez consecutiva nos Jogos. Em Tóquio-2020 foi derrotada nas quartas de final pela irlandesa Kellie Harrington. Lin Yu-Ting fará sua estreia olímpica em Paris. Foi medalha de ouro no Mundial de 2018 e 2019 promovido pela AIBA e, antes de ser desclassificada pela organização por não atender aos critérios de elegibilidade, havia conquistado o bronze no Mundial de 2023.
Os Jogos Olímpicos são um campo de batalha simbólico para questões de identidade de gênero e igualdade. Portanto, ao decidir flexibilizar as regras no boxe como já havia feito em outros esportes, o COI abre um precedente para que outras associações esportivas adotem postura semelhante em relação aos transgêneros.
Bibliografia:
HARPER, J., et al. Transwomen in elite sport: scientific and ethical considerations. Journal of Medical Ethics, 46(8), 518-525, 2020.
Jones, B. A. Inclusion of transgender athletes in sports. Current Sports Medicine Reports, 20(6), 314-320, 2021.
HILTON, Emma N. ; LUNDBERG, Tommy R. Transgender Women in the Female Category of Sport: Perspectives on Testosterone Suppression and Performance Advantage. Publicado em: 08 de dezembro de 2020, Volume 51, páginas 199-214, (2021)
TEETZEL, Sarah. Transgender Eligibility Policies in Sport: Science, Ethics, and Evidence, In.REID, Heather, MOORE, Eric, Parnassos Press-Fonte Aretusa, 2017, pp. 161-170.
Comments